14 anos do polêmico documento americano – @gazetadopovo
Comunicar-se de forma objetiva e clara, sem rodeios, é uma característica frequentemente atribuída à cultura norte-americana. Talvez esse jeito “supersincero” explique por que em 2010 veio à tona um estudo da ONG Avoided Deforestation Partners (ADP), patrocinado pela Associação dos Fazendeiros dos Estados Unidos (NFU), defendendo abertamente um freio na conversão de novas áreas à agricultura em países tropicais para, em contrapartida, ocasionar um aumento bilionário da renda dos produtores americanos.
Catorze anos depois, algumas premissas infundadas do polêmico relatório continuam a embasar discursos e ações contra a agropecuária brasileira, fora e dentro do país.
O documento era intitulado “Farms here, forests there” – ou seja, “fazendas aqui, florestas lá”, do ponto de vista geográfico americano. Causou polêmica justamente numa época em que se discutia no Brasil a implementação do Código Florestal. Aprovado em 2012, o código se tornou a legislação ambiental mais rígida do planeta entre países de vocação agrícola, com exigência de preservação da cobertura nativa em 20% a 80% das propriedades rurais, a depender do bioma.
Essas restrições, contudo, não seriam o bastante. Segundo o documento americano, “acabar com o desmatamento por meio de incentivos nos Estados Unidos e da ação internacional sobre o clima poderia aumentar a renda agrícola americana entre US$ 190 bilhões de US$ 270 bilhões de 2012 a 2030″.
Estudo fez contas das vantagens da preservação “dos outros”
Todo esse aumento de renda viria devido a uma menor concorrência de países como o Brasil, que ano a ano agrega novas áreas à produção. O estudo falava em “aliviar os custos de uma política climática” para os produtores americanos.
“Se as florestas forem preservadas, a terra não será transformada em pastagem ou plantação. Embora parte da produção seja transferida para outras terras no país ou a produtividade possa aumentar mais que aumentaria sem a pressão das restrições da terra, podemos esperar ver uma produção reduzida desses países, como resultado da restrição ao uso da terra e de custos mais elevados de produção”, dizia um trecho do artigo.
Em relação à soja, o estudo estimava que os produtores americanos teriam aumento cumulativo de receita entre US$ 34,2 bilhões e US$ 53,4 bilhões com a preservação gradual das florestas até 100%, em 2030. Quanto à indústria madeireira, o cálculo era de que se o desmatamento fosse eliminado, o preço da madeira por metro cúbico aumentaria entre US$ 14 e US$ 21, a cada ano. Na produção de carne, interromper a abertura de novas pastagens no bioma amazônico significaria evitar que entrassem no mercado, anualmente, 434 mil toneladas adicionais.
Visões parecidas sobre o papel dos países tropicais
O discurso “fazendas aqui, florestas lá”, apesar do espanto causado inicialmente por ser tão explícito, não perdeu atualidade ao traduzir como países desenvolvidos enxergam a distribuição de deveres e responsabilidades no ponto em que se cruzam desenvolvimento econômico, meio ambiente e aquecimento global.
“Hoje, olhando para o Green Deal europeu e sua legislação antidesmatamento, tenho uma sensação de déjà vú com a época do estudo ‘Farms here, forests there’”, diz Camila Sande, assessora de Relações Internacionais da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Camila observa que nos dois casos os mesmos países tropicais são afetados – Brasil, Indonésia, Congo e outros que ainda detêm florestas.
“Há um paralelo muito forte dos protestos de agricultores na União Europeia atualmente com aquela política americana, embora as origens sejam distintas. O Green Deal veio dos ambientalistas, os verdes que dominaram o parlamento europeu entre 2019 e este ano, enquanto o ‘Farms here’ veio da União dos Fazendeiros Americanos. As origens são bem distintas, mas os argumentos são similares”, aponta.
Exigências ambientais como ferramenta comercial
Desde o início do ano, uma série de protestos de agricultores se espalhou pela Europa, da República Tcheca à Polônia, Espanha, França, Itália e Alemanha, contra alta de custos, preços agrícolas deprimidos, importações baratas e restrições dos regulamentos climáticos do Green Deal. Dentre outras exigências domésticas, o pacto verde restringe o uso de pesticidas e defensivos, estabelece meta mínima de 25% de cultivo de orgânicos e prevê que 4% das terras agrícolas sejam convertidas à conservação.
O atendimento de requisitos ambientais será estendido como condição de comércio com outros países, e exemplo disso é a taxa de ajuste de carbono na fronteira (CBAM), que se aplicará a produtos que não atendam às metas de redução de emissão de carbono impostas na Europa.
Outra medida restritiva externa é a lei antidesmatamento, que abrange 356 produtos de sete cadeias – borracha, cacau, café, carne bovina e couro, madeira e papel, óleo de palma e soja – e exige que a área de produção seja 100% livre de desmate, a contar de 31 de dezembro de 2020.
Esse culturalismo ambientalista retratado em reportagem da Gazeta do Povo, conforme definição do jurista Daniel Vargas, da FGV-SP, foi hegemônico nos últimos dez anos, mas agora dá sinais de crise e de que poderá desmoronar. Porque asfixia a produção de alimentos com excesso de regras.
Em artigo, Camila Sande e Sueme Mori, diretora de Relações Internacionais da CNA, apontam que os agricultores europeus se sentem rotulados pelas políticas ambientais como “inimigos do meio ambiente”. “Essa visão de que a produção e o respeito ao meio ambiente são conceitos antagônicos é equivocada e o Brasil é prova disso”, argumentam.
Comparativamente, produtor brasileiro “é heroico”
“Os produtores brasileiros convivem com uma legislação ambiental restritiva há mais de duas décadas, e a produção no país tem obtido recorde após recorde. Por ora, o fazem sem protestos, mas cientes de que os serviços ambientais que prestam ao Brasil e ao mundo devem ser recompensados com mais e melhores políticas de apoio. Perto das reclamações dos europeus, o que o produtor brasileiro passa é heroico”, dizem as autoras.
Um ponto sempre presente nos protestos europeus é a crítica às tratativas de acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul, devido ao temor da concorrência, particularmente do Brasil, líder global em exportações de commodities importantes como soja, carne e açúcar.
As políticas do “Fazendas aqui” americano, e do Green Deal europeu, têm em comum uma visão equivocada de que o Brasil deve sua competitividade ao avanço em áreas de florestas.
Um recorte do crescimento da produção agropecuária brasileira mostra que o principal vetor nas últimas décadas não foi a expansão de área, mas os ganhos de produtividade pela incorporação de tecnologia. Por outro lado, o desmatamento ilegal não interessa a nenhum agricultor brasileiro.
Hábito de colocar todo desmatamento na “conta do agro”
Apesar de o Brasil conciliar produção e preservação como poucos lugares fazem, existe ainda um hábito de atribuir o ônus de qualquer desmatamento ao agronegócio. Felippe Serigati, economista e professor do Centro de Agronegócios da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), aponta que “até o garimpo, que é extração mineral, e que não tem nada a ver com o setor, cai na conta do agro”.
“Um fato que explica nossos problemas de desmatamento é a questão fundiária, que tem muito buraco. Sem ela, você encontra uma área desmatada, pega o indivíduo em flagrante e não sabe em quem aplicar a multa. Isso não é exclusividade de nossas florestas, de quem opera com o agro. Nas regiões metropolitanas você encontra comunidades com uma série de pessoas que estão em áreas que não lhes pertence, ocupando inclusive reservas de manancial, que é uma questão difícil de resolver. Os problemas fundiários são um problema do Brasil, e não do agro”, afirma Serigati.
Cerrado é o bioma da vez, na alça de mira
Se as questões ambientais da Amazônia têm sido durante décadas o pretexto do discurso contra o agro brasileiro, ainda que o centro da produção esteja a centenas e até milhares de quilômetros de distância, atualmente outro bioma ganha atenção.
“Acontece que a expansão da fronteira agrícola no bioma amazônico é muito pequena, a maior parte do solo não se presta à agricultura de grande escala. É o Cerrado que está agora na alça de mira. Regiões como o Matopiba, é ali que estão de olho, preocupados com a concorrência brasileira. Todo o movimento ambientalista foi criado com a finalidade básica de convencer os países em desenvolvimento de que não haveria condições de todos terem o nível de vida dos países industrializados. E eles contam com uma tropa de choque, que são as ONGs, e o Brasil é alvo dessa investida”, afirma Geraldo Luís Lino, geólogo e coautor do livro “Máfia Verde: o Ambientalismo a Serviço do Governo Mundial”.
Curiosamente, observa ele, “a apreciação dos europeus sobre
os excessos da agenda ambiental/climática é apenas para consumo interno. Quanto
ao Brasil, a intolerância não sofreu qualquer alteração”.
Para analistas ouvidos pela Gazeta do Povo, seria simplificar demais o debate argumentar que todos os ambientalistas estão “contaminados” por interesses estrangeiros, mas, igualmente, seria ingenuidade não perceber interesses comerciais claramente expressos em documentos como o “Farms here, forests there”, dos americanos, e o regulamento antidesmatamento, da União Europeia.
Como pano de fundo, a questão comercial
Se houvesse uma competição de mercado sem barreiras, pondera Serigati, da FGV, não haveria como segurar o Brasil: “Eles estão com dificuldade de segurar os produtos que vêm da Ucrânia, que não opera com uma escala tão grande assim. É natural que recorram a isso. Por mais que o argumento tenha apelos emocionais, o pano de fundo é uma questão comercial”.
“Por que os europeus proíbem transgênicos, que não fazem nenhum mal à saúde, e os Estados Unidos não proíbem? Ora, como os americanos já produzem transgênicos, eles não conseguem colocar essa barreira no mercado deles, daí essa narrativa não se encaixa. Já a Europa aproveita para produzir apenas com sementes convencionais e assim se protege de produtos que venham do Brasil ou dos próprios EUA, com o argumento de que não querem produtos transgênicos”, enfatiza.
Na época do lançamento do documento americano “Fazendas aqui,
florestas lá”, o pesquisador Décio Gazzoni, da Embrapa Soja, atuava na Secretaria
de Planejamento Estratégico da Presidência da República. Na avaliação dele, já
estava claro para os americanos que a capacidade competitiva do agricultor
brasileiro era grande e que seria preciso pôr um freio à produção e exportação
de soja e milho.
“Já faz cinco que o Brasil é o maior produtor mundial de soja, e está caminhando rapidamente para ser o maior exportador de milho do mundo. Por trás da vestimenta ambiental estava um enorme medo de competição direta com o Brasil. E isso volta agora nesses protestos de agricultores europeus, que se posicionam tão frontalmente contrários ao acordo Mercosul e União Europeia”, aponta Gazzoni.
Na comparação, contudo, há pouco espaço para argumentação ambiental contra a agricultura brasileira.
“Veja a diferença do tamanho da área preservada com florestas nativas primárias no Brasil, na Europa e nos EUA. Nos Estados Unidos até existe uma política ambiental de stand-by, interessante, mas a grande diferença é que lá o governo paga para o agricultor não plantar e não deixar a área em pousio ou com vegetação nativa. Aqui é o contrário, o agricultor às suas próprias custas tem que fazer isso e ainda é responsabilizado se acontecer alguma coisa com as áreas de reserva legal e preservação permanente”, compara o pesquisador.
“Tenho dito que o agricultor europeu não aguenta cinco anos de exposição à competição sem subsídios, sem protecionismo governamental, com o agricultor brasileiro”, afirma.
Relatório americano foi relativizado, após críticas
O documento americano “Fazendas aqui, florestas lá” conseguiu, à época, desagradar tanto ambientalistas como agricultores. Os “verdes” reclamaram que o melhor argumento para proteção dos biomas não é o benefício aos produtores americanos, mas à própria população brasileira.
Em nota, ONGs americanas como a The Nature Conservacy, Conservation International e National Wildlife Federation criticaram a inferência, “totalmente infundada, de que o desmatamento em florestas tropicais pode ser facilmente interrompido, e suas conclusões são, assim, irrealistas”. As premissas do estudo americano, contudo, seguiam o mesmo cronograma do programa REDD+, da Convenção do Clima da ONU, de reduzir o desmatamento em 50% até 2020 e em 100% até 2030.
Ainda naquele ano de 2010, diante da controvérsia criada, a ONG Avoided Deforestation Partners divulgou novo documento em que argumentava que o Brasil poderia, na verdade, ser grandemente favorecido pela proteção das florestas dentro das estratégias climáticas globais, com potencial de ganhos de US$ 300 bilhões até 2030.
Relatório não pretendia chamar atenção fora dos EUA
Ao justificar o conteúdo do primeiro estudo, Glenn Horowitz, diretor da ADP, afirmou que a intenção original do relatório era convencer senadores dos EUA ligados ao agronegócio a aprovarem a legislação para enfrentamento das mudanças climáticas.
“Nos Estados Unidos, pode ser difícil ganhar apoio de muitos congressistas para políticas como a proteção de florestas tropicais que beneficiam, antes de tudo, outros países, a não ser que você demonstre que essas políticas podem também beneficiar os EUA”, justificou-se à época, falando à “Folha de S.Paulo”.
O erro, admitiu a ONG, foi imaginar que ninguém fora dos Estados Unidos daria atenção ao relatório. Como se vê, o relatório não só chamou atenção, como traduziu, de maneira objetiva, simples e direta – à moda americana – o raciocínio por trás de muitas políticas protecionistas, travestidas de roupagem verde, contra a agricultura tropical brasileira.
Em 2019, o então ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, irritado com dificuldades de licenciamento ambiental para a exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas, disse que o país desperdiçava oportunidades econômicas e condenava parcelas da sociedade ao subdesenvolvimento. E citou o relatório americano: “Esse negócio de ‘farms here, forests there’ não é lenda, ele existe”.
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