Moradores da Zona Leste compartilham memórias esquecidas de São Paulo – @agenciabrasil
“Quem construiu Tebas, a cidade das sete portas?
Nos livros estão nomes de reis;
Os reis carregaram as pedras?
E Babilônia, tantas vezes destruída,
Quem a reconstruía sempre?
Em que casas da Dourada Lima viviam aqueles que a construíram?
No dia em que a Muralha da China ficou pronta,
Para onde foram os pedreiros?”
Neste trecho do poema Perguntas de um trabalhador que lê, de Bertold Brecht, lembramos a importância de todos os trabalhadores que construíram e constroem a riqueza da cidade de São Paulo nesses 470 anos.
E, no extremo da zona leste de São Paulo, nos bairros de Guaianases, Lajeado, São Mateus e Cidade Tiradentes, o coletivo CPDOC Guainás tem trabalhado para trazer à luz a história dos trabalhadores e moradores da periferia, que é pouco falada e preservada. A região é historicamente conhecida pelas suas fábricas de tijolos e pedreiras, e a estação de trem Guaianases era um ponto de ligação entre a região central de São Paulo e o Rio de Janeiro.
A conversa com os pesquisadores Renata Eleutério, Ireldo Alves e Fernando Filho ocorreu num bar próximo à estação Guaianases, isso porque eles ainda não têm uma sede própria. Na mesa, trouxeram em uma pasta fotos e documentos históricos dos locais e manifestações culturais da região. Além de preservar o arquivo histórico dos bairros, o grupo realiza entrevista com moradores para que falem sobre suas histórias com o bairro e também realizam caminhadas pela região para disseminar o conhecimento sobre a história desses bairros.
Para começar, Ireldo Alves falou da participação da região na construção do icônico Obelisco, monumento que fica perto do Parque do Ibirapuera.
“O monumento do Obelisco de São Paulo provavelmente. É das pedras tiradas dessa região aqui de Guaianases, de Lajeado, das pedreiras que aqui se encontram. Então a pedreira, digamos assim, ela tem essa questão simbólica, no sentido de que o trem hoje leva em sua maioria os trabalhadores. E a princípio é essa questão de exploração, né? Não sei, tira daqui e leva pro centro. Antes eram as pedras, as olarias, os tijolos, tudo mais, agora são as pessoas.”
Fernando Filho, pesquisador.
“Cadê os nossos monumentos, nossos museus, nossos memoriais? Porque a gente tem que se deslocar para o Museu do Ipiranga para entender a história de São Paulo, mas chegando lá ele não conta a história de Guaianases.”
Ireldo Alves, pesquisador
“A gente percebe que tem uma construção mesmo de que os trabalhadores não precisam ter história. Os museus estão no centro, que museu tem mais próxima aqui na zona leste? Então, é bem o estado falando pra pra gente assim, olha, vocês não precisam ter história. Vocês não são relevantes. Eu acho que o CPDOC vem com essa ideia de transformar isso.”
Renata Eleutério, pesquisadora
“Os trabalhadores da pedreira se colocando, enquanto, olha, fizemos isso, tivemos greve, perdemos familiares, fulano. Então, cadê essas histórias? Cadê essas memórias? Então pra gente, quando a gente começa a idealizar, era um espaço de ressignificar essa história, sobretudo desses trabalhadores, dessas trabalhadoras, das mulheres cuidando das casas.”
Edinalva Lúcia Santos, captado pelo CPDOC Guaianás para o projeto histórias do meu bairro.
“Eu moro aqui desde quando eu nasci, que eu nasci aqui em Guaianases, né? Olha, pra mim o mais importante é: eu sou da escola de samba, Unidos de Guaianases. Então isso me marca e o que mais marcou pra mim foi a Chácara do Padre. A gente dançava baile lá, era muito bom.”
“Então pra só pra evidenciar um pouco como é que a gente atua. A gente inicia levantando que espaços são esses, que lugares são importantes esses, né? Então, o Parque da Consciência Negra é um parque que fica na cidade de Tiradentes. Houve toda uma luta e uma tentativa de evidenciar o espaço como um território negro, de um espaço que teve um possível aquilombamento, de indígenas e de povos negros, num período aí da escravização, ali no final do século XVIII e XIX.”
“A gente ainda encontra resquícios dessa história porque devido à especulação imobiliária, aos processos de adensamento da população e tudo mais, as pessoas precisam morar e várias dessas coisas foram passadas por cima. Então, quando se levanta grandes prédios aqui na região central de Guaianases, perto da estação, todos esses edifícios, a gente sabe que em algum momento alguma coisa pode ter sido apagada.”
“Quando nós começamos a estudar os povos Guaianás, há pouquíssimos indícios desses povos aqui em Guaianases. A gente encontra eles realmente em São Miguel, Itaquá, Guarulhos. Assim, pelo que é mínimo, que a gente conseguiu de levantamento, era um território de passagem, e não de assentamento dos povos. De origem do tronco Jê. Porque tem uma confusão aí desses povos com os tupis, com os tupiniquins, mas que inclusive é a oficialidade da história dos Guaianás na cidade de São Paulo.”
“Como termo de curiosidade, a igreja Santa Quitéria está no Lajeado, a Santa Cruz aqui no centro de Guaianases, e a Cruz das Almas sentido Tiradentes. Elas estão numa linha reta de uma avenida. E foram mais ou menos construídas ou fundadas no mesmo período, final do século XIX e começo do século XX. E são igrejas que têm uma história atrelada com a escravidão negra, com as populações indígenas e também com os negros recém-libertos.”
“E uma elite até intelectualizada aqui em Guaianases acaba promovendo esse tipo de acesso e também de criar uma identidade com essa cidade de São Paulo, com essa história da cidade de São Paulo. Talvez a gente, quando a gente tenta dizer, olha, nós aqui também tivemos blocos e britas que construíram o centro, que levaram, não que não sejam fatos, mas a gente também faz essa relação e lá a elite anterior da cidade de Guaianases, as cidades de Guaianases, do bairro de Guaianases, tentou fazer. Então, por exemplo, a gente tem aqui a casa que todo mundo fala que é a casa do Dom Pedro, sabe? Assim, é por onde o Dom Pedro passou. É uma tentativa de ligar o bairro com a história maior da cidade, que eu acho que é interessante.”
“Porque na hora que vai falar do aniversário da cidade de São Paulo, os shows ou as apresentações, os museus, os memoriais sempre estão contando a história daqueles territórios ali. A Praça da Sé, a Avenida Paulista, o Pacaembu, do centro que a gente chamaria de centro expandido. Então, pra nós que estamos aqui, do ponto de vista de quem já morou aqui também, olha praquilo na televisão e fala ‘ok’. É um feriado que eu vou ficar de boa em casa. Estamos comemorando a história da minha cidade, mas eu sei que a história da minha cidade é aquilo ali.”
“Em segundo ele não liga, ele não faz muita relação. Você está longe. Já porque aquele espaço do centro é tão violento pra ele, pra ele trabalhar. É uma história de lá. Não é uma história. Não se identifica, não cria uma ligação. A maioria da população aqui tá mais ligada a questão, são nordestinos, pessoal do Paraná, de Minas Gerais e tudo mais. Então são mais ligados, até essa história, digamos, dessas regiões do Nordeste, do Sudeste ou até do Sul, do que a própria história da própria cidade.”
“Tudo tem história, a questão é o que que a gente pode potencializar dessas histórias, que a história dos trabalhadores, geralmente, é uma história cotidiana, do dia a dia, e elas são menos significativas, porque tem menos atos heroicos. Pelo menos é isso que se olha. Porque a ação de história do mais potente do povo é uma ação coletiva.”
Zilda Maria de Oliveira, captado pelo CPDOC Guaianás para o projeto histórias do meu bairro.
“Não pude ficar morando no apartamento, aqui, meu marido faleceu, né? Devido às distâncias que a gente trabalhava e me marcou mais foi isso aí. A perda dele. Porque ele trabalhava muito longe. Trabalhava no aeroporto de Congonhas e tinha que tomar várias conduções. Demorava o percurso pra ir, pra voltar. E nessa daí ficou doente.”
“Um pouco do que eu acho que a gente faltou também falar, é um pouco dessas ocupações, de moradia. Então, por exemplo, a Vila Primeiro de Outubro, ela foi uma ocupação ocorrida no meio da ditadura militar, ali em 1981 e sofreu com todo o processo da Polícia Militar e conseguiu resistir e regularizar e fundar, então você tem todo um histórico dessa ocupação e ela foi pioneira pra todo movimento que segue posterior, de movimentos de moradia que vão acontecer na cidade de São Paulo. Então tem esse lugar histórico de importância dos movimentos de luta também dos trabalhadores.”
Este radiodocumentário foi feito em parceria com o Radiojornalismo EBC e a Radioagência Nacional. Ouça os outros episódios da série sobre os 470 anos de São Paulo.
* A reportagem é de Nelson Lin, a produção de Guilherme Strozzi, coordenação de processos de Beatriz Arcoverde e sonoplastia de José Maria Pardal.
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